I- Se tudo que eu sou depende de quem eu era, e o que eu era está se apagando, quem sou eu?
Um estudo sobre memória e identidade - o que significa ser "você" quando suas lembranças começam a desaparecer?
Outro dia, alguém me perguntou sobre um momento da minha infância. Algo simples, uma memória que, em teoria, deveria estar ali, ao alcance da mão. Mas minha mente, ao invés de abrir um baú repleto de lembranças, devolveu-me apenas um quarto vazio, poeira e ecos distantes. Procurei nos cantos, levantei as tábuas do chão, revirei gavetas imaginárias, mas nada. Apenas o silêncio de algo que se perdeu.
Fugit irreparabile tempus
A verdade é que minha memória está ruindo. Não lembro o que fiz na semana passada, não lembro do capítulo de livro que li ontem, esqueço conversas importantes, detalhes de histórias que um dia me marcaram. Os momentos que um dia definiam quem eu era estão se apagando, tinta desbotando em uma fotografia esquecida ao sol. E, se não consigo lembrar de mim mesma, quem sou eu agora?
Nos últimos anos, percebi isso se intensificando. O uso desenfreado da internet, a avalanche de informações consumidas sem pausa, a necessidade constante de estar conectada… Tudo tem um preço. Minha atenção se fragmenta, minha mente sobrecarregada se recusa a reter. Eu vejo, leio, escuto, mas tudo escorre pelos meus poros como sangue. Tento segurar, mas a cada dia perco um pouco mais.
E o que me assombra ainda mais é perceber como confiamos em arquivos digitais para lembrar quem fomos. Como se nossa existência estivesse andando em uma corda bamba, frágil e volátil, se segurando em fios que a qualquer momento podem se partir. Um exemplo disso ainda me assombra: quando criança, todas as minhas fotos estavam guardadas no notebook da minha mãe. Pequenos fragmentos de um tempo em que eu era amada simplesmente por existir. Mas, certo dia, tropecei no fio do carregador. O som do impacto contra o chão foi seco, absoluto. O notebook nunca mais ligou.
E com ele, todas as minhas fotos de infância foram perdidas. Não havia backup, não havia retorno. Primeiro, perdi as imagens. Depois, perdi as lembranças que elas sustentavam. Como um peixe oleoso e traiçoeiro, elas escapam por entre meus dedos. Isso me desespera. Porque eram registros de uma versão minha que já não existe mais, uma criança despreocupada, rindo nos braços dos pais, vendo o mundo através de um filtro dourado, acreditando que a felicidade era um parque de diversões e um algodão-doce azul.
Agora, restam apenas borrões. Sensações dispersas. O fantasma de um tempo que se dissolve a cada dia.
Nossa identidade, de alguma forma, está entrelaçada à nossa memória. Somos um tecido costurado por lembranças, experiências, histórias que contamos sobre nós mesmos. Mas e quando essas histórias começam a se apagar? O que sobra? O que restará de mim? É possível existir sem raízes, sem as âncoras que nos prendem ao passado? Ou estou fadada a ser uma casa sem paredes, um nome sem dono?
Talvez eu não esteja sozinha nisso. Talvez esse seja um sintoma coletivo, um efeito colateral do mundo digital. Uma geração inteira navegando por fragmentos de si mesma, se esquecendo enquanto continua existindo. A memória não some de uma vez; ela dissolve-se aos poucos, como neblina ao amanhecer, até que um dia olhamos no espelho e não reconhecemos o rosto que nos encara de volta. Essa sensação me adoece como febre. Não consigo mais viver um momento sem meu corpo tremer em medo e cólera de logo logo dele me esquecer.
E se minha mente continuar assim? Como vou me reconhecer no futuro? Como vou provar para mim mesma que existi?
Não sei a resposta. Mas tento, de alguma forma, encontrá-la. Talvez por isso tenha me agarrado ao hábito de registrar. Escrevo diários, me esforço para atualizar meu journal com momentos especiais, criei uma contas em redes sociais onde me permito ser mais livre, e, mesmo odiando, me obrigo a tirar fotos, de mim, dos lugares, das pessoas, das coisas que quero lembrar. Talvez essa seja a solução. Talvez desacelerar. Talvez conversar sobre isso.
Mas ainda dói. Porque sei que já perdi uma parte de mim que nunca mais poderei recuperar. E me pergunto se minha criança interior ainda vive em mim, ou se desapareceu junto com aquelas fotos, soterrada sob o esquecimento.
Minha mente se tornou meu próprio purgatório.
E você? Também sente que está se esquecendo de si mesmo?